“E assim, a luz (…), pela sua natureza mesmo, multiplicou-se
infinitas vezes e espalhou-se uniformemente em todas as direcções. Foi desta
forma que, no início do tempo, ela estendeu a matéria, que não podia deixar
atrás, arrastando-a com ela e formando uma massa do tamanho do Universo
material.” Esta descrição do início do cosmos, muito evocadora da moderna
teoria do Big Bang, foi escrita… em latim, por um bispo e cientista medieval
inglês, Robert Grosseteste (c.1175-1253).
Agora, foi revisitada por uma equipa
internacional de físicos, cosmólogos, historiadores, filósofos, latinistas, no
âmbito de um projecto (The Ordered Universe Project) apoiado pelo Conselho
britânico de Investigação nas Artes e Humanidades. “Este projecto representa
uma maravilhosa e única fusão entre especialistas medievais e cientistas
modernos”, disse ao PÚBLICO Giles Gasper, medievalista da Universidade de
Durham (Reino Unido) e um dos principais autores do trabalho.
O estudo revelou que os problemas teóricos
com que se defrontam os cosmólogos modernos já existiam há 800 anos (apesar de
ser muito improvável que Grosseteste tivesse consciência deles). Os resultados
vão ser publicados em breve na revista Proceedings of the Royal Society A (mas já estão disponíveis no
site arxiv.org).
Em 1225, no seu curto tratado Da
luz ou o início das formas, Grosseteste expunha a primeira
explicação científica de sempre da origem do Universo. Claro que, na altura,
pensava-se que a Terra, imóvel, era o centro de tudo e que as estrelas e os
planetas giravam em torno dela. Claro que Grosseteste não dispunha de
ferramentas matemáticas para traduzir as suas palavras em fórmulas. E claro que
não inventou a teoria do Big Bang, que deriva das equações da Teoria de
Relatividade de Einstein e descreve uma realidade física totalmente diferente.
Mas, mesmo assim, o texto (disponível
desde 1942 numa tradução em inglês, a partir da qual traduzimos o excerto
acima) não deixa de ser impressionante pela modernidade das ideias que expõe.
Foi por isso que Gasper e Richard Bower, físico da mesma universidade,
juntamente com outros colegas, quiseram reinterpretá-las à luz da linguagem
matemática de hoje – e a seguir, simulá-las num computador para ver se
produziriam um Universo tal como Grosseteste o concebia no século XIII.
“O trabalho que Grosseteste fez no seu De
Luce é nada
menos do que revolucionário”, disse-nos Bower. “A sua explicação do Universo
vai para além de todas as anteriores. Aristóteles concluíra que o Universo não
tinha início nem fim, mas Grosseteste diz exactamente o contrário, começando
por propor uma nova teoria da matéria e desenvolvendo-a numa explicação da
criação do Universo. Ou seja, trabalha como um cosmólogo moderno, propondo leis
físicas e seguindo-as até ao fim. Acho isso espantoso.”
A cosmologia medieval estipulava, com base
nas ideias de Aristóteles, que o Universo estava dividido em dez “esferas”
concêntricas (a décima e mais exterior, o paraíso cristão, fora acrescentada
mais tarde). De fora para dentro, seguiam-se mais oito, correspondentes ao
firmamento (que continha as estrelas), Saturno, Júpiter, Marte, o Sol, Vénus,
Mercúrio e a Lua. A primeira esfera, no centro, era a da Terra e era composta
por quatro “sub-esferas” dos quatro elementos: fogo, ar, água e terra.
Tal como fazem hoje os cosmólogos para
explicar o que a ciência moderna revela acerca do Universo, Grosseteste
concebeu a sua teoria de forma a explicar essa visão medieval. Diga-se
que, ao longo do seu trabalho, os autores se preocuparam em não
“contaminar” a forma de pensar de Grosseteste com ideias modernas: “É crucial
evitar sobrepor uma visão moderna do mundo ao pensamento de Grosseteste”,
escrevem no seu artigo.
Multiversos medievais
O texto do cientista medieval explica como
as interacções entre luz e matéria, que para ele são “inseparáveis”, vão dando
origem consecutivamente as esferas celestiais. Isso acontece, explica, devido à
rarefacção da matéria à medida que ela se afasta do ponto de origem (arrastada
pela luz), e ao facto de, uma vez atingido o limite do seu percurso, a luz ser
irradiada da periferia para o centro sob uma outra forma, desta vez comprimindo
a matéria. “Tanto quanto sabemos, De Luce é o primeiro exemplo trabalhado
a mostrar que um único conjunto de leis físicas poderia dar conta de estruturas
tão diferentes como a Terra e o céu”, salienta a equipa num comentário na
última edição da revista Nature. O que, acrescentam, “demonstra
quão avançada era a filosofia natural no século XIII – que não foi de todo uma
Idade das Trevas”.
Fonte: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/uma-cosmologia-medieval-reformulada-pela-matematica-moderna-1628657
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